Os participantes do festival Bicicultura, realizado em 2016, em São Paulo, tiveram a oportunidade de assistir a uma apresentação do cicloativista Jeffrey Lim, que coordenou a elaboração de um mapa de ciclorrotas em sua cidade, Kuala Lumpur, a capital da Malásia.
Aos 39 anos, com formação em design, Jeffrey divide-se entre uma atividade de arte-educador, a pesquisa do patrimônio histórico e o ativismo pela bicicleta em um país de clima equatorial, comparável ao de Belém ou Manaus, com chuvas torrenciais todos os dias e temperaturas sempre muito altas. Lá os idiomas oficiais são o inglês e o bahasa malaysia, mas fala-se também o chinês, árabe e idiomas indianos, distribuição linguística que também se projeta em três religiões majoritárias: islamismo, cristianismo e hinduísmo.
Nessa conversa, via e-mail, ele conta um pouco da história da bicicleta na Malásia, fala sobre as manifestações e bicicletadas de protesto e revela como vão as negociações entre os ciclistas e o governo federal do país para a o estímulo da mobilidade ativa, a pé e de bike.
Primeiro, uma visão geral do ciclismo em Kuala Lumpur e na Malásia como um todo...O país tem uma tradição de usar a bicicleta?
Ciclismo e bicicleta têm uma longa história na Malásia. Sendo uma antiga colônia britânica, herdamos muitas das invenções e máquinas que foram disseminadas com a revolução industrial - a bicicleta uma delas. No começo, como em todo o mundo, a bicicleta era algo que apenas os ricos e os reis podiam usar e pagar. Na Segunda Guerra Mundial, quando os japoneses invadiram o país, eles conseguiram ocupar todo o território da península em menos de um mês, graças principalmente ao uso da bicicleta! Os britânicos haviam destruído pontes e estradas, mas os japoneses conseguiam penetrar pelas trilhas das florestas com suas bikes. Na época do domínio britânico (1895-1946), a Federação dos Estados Malaios estava produzindo peças para bicicletas, e no melhor momento havia muitos fabricantes independentes de bicicletas completas para todo o país e também para exportação. Nós também tivemos uma fábrica da Raleigh em Shah Alam, em Selangor. Toda família tinha uma bicicleta, que era um instrumento de mobilidade para todos.
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Manifestações de ciclistas nos anos 1960 Fotos: Arquivo Jeffrey Lim Gurmit Singh, em 1979
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Quando surge o movimento de ativistas de bicicleta na Malásia?
Acho que o ativismo com a bicicleta sempre esteve presente. Na década de 1930, um estudante de Malaca (provìncia na região sul da península que já foi dominada pelos portugueses), Wong Ah Chai, cumpriu o desafio de pedalar desde a Malásia Peninsular até a Inglaterra. Nos anos 1960 e 1970 ocorreram numerosas manifestações em todo o país e na década de 70, tivemos um ativista e ambientalista, Gurmit Singh, que ganhou projeção internacional. Desde aquele período tínhamos muitas ONG's na frente ambiental. As recentes tendências mundiais que retomaram o uso da bicicleta também chegaram com força à Malásia, em localidades como Penang, Selangor e na capital, Kuala Lumpur. Grupos de ciclismo passaram a tomar as ruas, mas principalmente como recreação. No início dos anos 2000, as bicicletadas Massa Crítica começaram em Kuala Lumpur e em outras cidades. Em 2007, reunimos mais de mil ciclistas em KL. A manifestação mais recente foi realizada em fevereiro passado.
Kuala Lumpur passou por um processo de "modernização" nos anos 1990-2000, com uma série de construções simbólicas, como torres gêmeas, monotrilhos etc. Houve algum avanço ou progresso na infraestrutura para uso de bicicletas na cidade?
Não. Isso não estava no planejamento da cidade, e infelizmente mesmo na versão KL City Plan 2020, ficou subentendido que essa infraestrutura não é prioritária na região central e também nos subúrbios.
Colaboradores reunidos em torno do mapeamento de ciclorrotas Foto: Arquivo Jeffrey Lim
Você coordenou a construção de um mapa - elaborado de forma colaborativa - com as melhores rotas para pedalar na capital. Esse trabalho já está consolidado? As autoridades levaram esse mapa em consideração para projetar uma rede de linhas de bicicletas na cidade? Por sinal, é possível falar em uma rede de vias de bicicleta em KL?
Sim, foi um trabalho coletivo. Eu pensei em mapear os caminhos para facilitar o uso da bicicleta, não apenas para o lazer, mas sobretudo como transporte cotidiano. Imaginei que depois de fazer um mapa ficasse mais fácil a implantação de alguma ingraestrutura. O mapa levou cerca de dois anos e meio para ser concluído e felizmente o conselho da cidade levou nossas indicações em conta e consolidou algumas rotas.
Depois que concluímos o trabalho, por uma sorte, o novo prefeito, Tan Sri Ahmad Phesal Talib, acolheu a ideia e a prefeitura decidiu inprimi-lo em três idiomas: bahasa, inglês e chines. No total foram 10 mil exemplares para distribuição gratuita. Mais do que isso, o prefeito me chamou para uma consultoria e daí nasceu a primeira ciclovia de Kuala Lumpur, com 5 km. Mas a cidade ainda não possui uma rede de ciclorrotas ou ciclovias viável para o transporte cotidiano. Após a manifestação de fevereiro - que resultou até na prisão de um ciclista - o Conselho Municipal anunciou a nomeação de um consultor acadêmico para produzir um plano-piloto para estimular o ciclismo e a caminhada.
Manifestação em fevereiro passado em Kuala Lumpur Foto: Arquivo Jeffrey Lim
Como é a integração entre transporte público (trens, monotrilho, barco, ônibus) e bicicletas?
A integração não é tão fluida como desejaríamos, pelo menos por enquanto. Cada serviço tem seus próprios regulamentos sobre a circulação de bikes. A maioria dos serviços de trens só admite bicicletas dobráveis e fora dos horários de pico. E nos ônibus elas não são permitidas.
Você poderia falar sobre a relação entre motoristas e ciclistas? Existe uma boa aceitação da idéia de "compartilhar espaços nas ruas"?
A maioria absoluta dos motoristas mantém uma conduta bem educada em relação aos ciclistas. Há alguns casos raros de agressividade, mas, em geral, isso ainda não é um problema. Talvez ainda não tenhamos chegado a um pico de uso que gere animosidades.
Como é o perfil dos ciclistas em KL? Homens, jovens? Ou as mulheres já pedalam pelas ruas da cidade?
O uso da bicicleta ainda é visto como uma atividade masculina, mas surpreendentemente, temos uma porcentagem elevada de mulheres que se uniram às nossas campanhas. Temos uma proporção de uma mulher para cada três homens ciclistas, aproximadamente isso...
O clima , que é muito quente na Malásia, interfere na decisão de andar de bicicleta? Como as empresas e outros locais de trabalho acolhem as pessoas que decidem ir trabalhar com suas bicicletas?
Sim, sim... o clima é quente e chuvoso. E pesa na decisão. No momento há um número crescente de empresas que oferecem alguns benefícios para quem vai de bicicleta, mas são casos muito raros, únicos. Apesar disso, muita gente opta pela bicicleta com ou sem benefícios. E considerando o clima, fazem mudanças em seu estilo de vida para adotar o ciclismo como meio de transporte.
Há duas semanas recebemos aqui no Brasil notícias sobre série de reuniões envolvendo cicloativistas e representantes de ministérios da Malásia. Existe algum plano nacional de mobilidade ativa em discussão no país?
Sim! Estamos discutindo um "masterplan" para ciclismo e caminhada. O trabalho foi iniciado em março deste ano com o Conselho da Cidade de Kuala Lumpur, o DBKL. Há também ideias em nível federal, mas geralmente como uma adaptação à infraestrutura de transporte já existente. Pensa-se a bicicleta como um meio para a primeira e última milha de uma viagem.
Em sua página, nós vimos algumas fotos de sistemas de bicicletas compartilhadas. Quais são as novidades em bike sharing na Malásia?
Empresas de compartilhamento de bicicletas estão aparecendo em todas as cidades. Até agora, pelo que sei, são cinco empresas diferentes e, por enquanto, menos de dez cidades ou locais com programas-piloto de compartilhamento de bicicletas. A maior e mais recente experiência é a de bicicletas sem estações fixas, que está bastante difundida pela cidade. Com o advento desse sistema, a maioria dos outros concorrentes está saindo ficando fora de mercado. No entanto, não há nenhum investimento e nenhum plano do setor governamental em relação a esses serviços de bicicletas públicas. Embora alguns desenvolvedores tenham começado a se instalar, as redes são muito pequenas para causar algum impacto social. Alto custo, longos prazos de implantação, baixos retornos para os investidores são alguns dos fatores pelos quais os sistemas de bike-share ainda não são populares e não têm prioridade no momento...isso além de algumas barreiras culturais.
Para concluir, como foi sua experiência de pedalar nas ruas de São Paulo?
A cultura da cidade é impressionante. O tráfego é pesado, mas os ciclistas têm uma conquista importante, especialmente pela decisão do prefeito anterior de implantar ciclofaixas, quase da noite para o dia, segundo eu soube. A rede me pareceu bastante extensa, e considerando que se trata de uma cidade expandida, com o formato de uma estrela, vi muitos corredores interessantes que entram pelas periferias. Talvez uma das maiores diferenças em relação a outras cidades do mundo seja a posição das ciclovias, nas laterais, junto do meio-fio. Durante as chuvas, há uma tendência natural de acumular água, lama e detritos, que podem ser um obstáculo para os ciclistas. Mas entendo que essas pistas foram convertidas muito rapidamente e que isso foi uma estratégia. Espero que no futuro, com financiamento, possam ser melhoradas, com uma nova pavimentação.
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