O transporte público como prioridade, o incentivo ao uso de transportes alternativos, como a bicicleta, e a meta de reduzir os altos números de mortes no trânsito. Foram essas as três principais preocupações de Fortaleza nos últimos anos ao montar sua política de mobilidade urbana.
Olhando para exemplos de fora, com intenso intercâmbio técnico com outras cidades e apoio de organizações não governamentais, a quinta maior cidade do Brasil colhe os primeiros frutos da mudança de paradigma que vem botando em prática.
A equipe de reportagem do jornal Nexo teve acesso aos dados completos do Relatório Anual de Acidentes no Trânsito feito pela Prefeitura de Fortaleza. O relatório está ainda em versão preliminar, faltando ainda consolidar números relativos a 2012, 2013 e 2014, quando o monitoramento foi irregular. Mas a partir da versão preliminar, as autoridades locais afirmam que já é possível dizer que o índice de mortes no trânsito em 2016 foi o menor em 15 anos.
“Embora ainda não seja o ideal, os dados mostram que as políticas públicas estão surtindo efeito, e as pessoas estão cada vez mais conscientes do seu papel, compartilhando espaço com outros modais que vêm sendo priorizados na atual gestão”, disse Arcelino Lima, superintendente da Autarquia Municipal de Trânsito e Cidadania.
Além disso, a cidade aumentou o número de corredores de ônibus de apenas 3,3 km em 2013 para os atuais 98 km — o que gerou aumentos de 24% a 207% na velocidade média de deslocamento dos coletivos. Já a malha cicloviária de Fortaleza cresceu 180% desde 2012, quando era de 73 km. Hoje, a cidade tem uma rede de 209 km de vias para bicicletas.
Ação imediata: faixas de ônibus
De 2004 para 2015, a frota de veículos de Fortaleza aumentou 226%, tornando-se a maior entre as capitais do Nordeste, no embalo das políticas de crédito à indústria automobilística concedidas nos governos Lula e Dilma. Entre 2010 e 2015, a população cresceu apenas 5,7%, ao passo que o total de veículo da cidade subiu mais de 40%.
“Era uma bomba armada para estourar. Esse incremento muito expressivo na frota, aliado a um modelo de aumento da capacidade viária para acomodar os carros, levou a um esgotamento. Nosso diagnóstico foi que precisávamos mudar o paradigma do transporte individual motorizado”, disse o secretário executivo de Conservação e Serviços Públicos de Fortaleza, Luiz Alberto Saboia.
Saboia entrou na administração municipal na gestão do prefeito Roberto Cláudio (PDT), em 2013. O político percebeu que mexer na questão do trânsito era vital: os congestionamentos haviam se tornado o principal problema urbano para 70% da população, segundo uma pesquisa feita na época. A prefeitura resolveu então priorizar o transporte público — no caso, os ônibus (o metrô é responsabilidade do governo estadual).
Para o longo prazo, foi pensado um plano estratégico, o Fortaleza 2040. Nele, fala-se em diretrizes de uso do solo, no sentido de adensar a ocupação da cidade como estratégia para melhorar a mobilidade, gerando menos deslocamentos. A inspiração vem de cidades como Barcelona e Paris, onde, ao longo do tempo, esse modelo adensado se revelou bem melhor, segundo Saboia, que o modelo americano, com cidades espraiadas, subúrbios e uso intensivo do carro.
“Mas isso é estrutural, envolve interesses vários, legislação, mercado imobiliário. Precisávamos de coisas no curto prazo, em seis meses”, disse. A prefeitura criou então o Plano de Ações Imediatas em Trânsito e Transporte de Fortaleza.
Com apoio da consultoria americana McKinsey e um grupo de técnicos saídos dos programas de mestrado e doutorado em engenharia de transportes da Universidade Federal do Ceará, foram definidas as linhas de trabalho: seriam prioridade obras de baixo custo, indutoras de mudança de paradigma e perceptíveis pela sociedade.
Esse plano começou como um programa temporário subordinado à Secretaria Municipal de Conservação e Serviços Públicos, mas acabou se tornando permanente. E se debruçou sobre as principais reclamações da população sobre o sistema de ônibus: rapidez, conforto e previsibilidade.
Foram então inauguradas faixas exclusivas de ônibus, que correm pela direita da via, onde carros não podem trafegar entre 6h e 20h. Na Avenida Santos Dumont, um dos principais eixos de Fortaleza, o ganho de velocidade dos ônibus depois da implementação da faixa foi de 207%. A prefeitura criou também o sistema de bilhete único, em que, com um tíquete, o passageiro pode pegar quantos ônibus quiser por duas horas.
Foi feita também a compra de ônibus com wi-fi e ar-condicionado, que representam atualmente 20% da frota — o plano é substituir toda a frota em seis anos. Como comparação, Recife tem apenas 32 ônibus climatizados, de uma frota de 2.800. E para resolver o problema da previsibilidade foram colocados sistemas de GPS nos ônibus da cidade e lançou-se um aplicativo, o Meu Ônibus Fortaleza, que permite ao passageiro ver a que horas o coletivo chega no ponto e quais os traçados das linhas. Lançado em 2015, o aplicativo foi um dos primeiros no Brasil a serem operados pela própria prefeitura de um município.
Integrado ao plano de expansão das faixas de ônibus, foi inaugurada uma série de binários em Fortaleza. Trata-se de uma forma de reorganização do trânsito em que se transforma uma via de mão dupla em via de mão única - com faixa para transporte coletivo e faixa para bicicleta e, também, requalificação das calçadas e iluminação pública. As vias paralelas então passam a ter o fluxo contrário. Desde 2014, foram implantados 13 binários em zonas diferentes da cidade.
Malha cicloviária expandida
Além da inauguração das faixas de ônibus, o plano apostou em algumas outras medidas de mobilidade urbana. Fortaleza tem como missão autodeclarada tornar-se a cidade “mais ciclável do Brasil”. Houve uma forte expansão das vias para bicicletas na cidade, que passou a ter, em 2017, 101,5 km de ciclovias 106,8 km de ciclofaixas e 0,7 km de ciclorrotas — números que a prefeitura pretende aumentar anualmente.
Fortaleza tem 80 estações de bikes compartilhadas. Foto: Prefeitura de Fortaleza/Divulgação
Com uma malha cicloviária total de 209 km, Fortaleza fica atrás apenas de São Paulo (498 km), Rio de Janeiro (441 km) e Brasília (420 km) entre as cidades com mais espaço para o tráfego de bicicletas.
“Fortaleza deu um salto grande, de fato. A política voltada para a ciclomobilidade começou após a pressão da sociedade, ainda com os protestos de 2013, e vem sendo mantida. Beneficia o trabalhador que pedala, que usa a bicicleta como meio de transporte. Hoje, as ciclofaixas — em sua maioria — atravessam a cidade inteira e, o que é mais importante para quem pedala, têm conexão entre si”, disse ao “Jornal do Commercio” Felipe Alves, que foi diretor da Associação dos Ciclistas Urbanos de Fortaleza.
Como incentivo para o uso dessas vias, foram criados dois programas. O Bicicletar, que espalhou 80 estações de bikes compartilhadas e registra maior média de viagens entre as capitais brasileiras, e o Bicicleta Integrada, que está em cinco terminais de Fortaleza e permite ao usuário do ônibus retirar uma bicicleta por até 14 horas — a ideia é que ele possa chegar do trabalho, usar a bicicleta para ir do terminal até sua casa e retornar a bicicleta apenas no dia seguinte, na estação.
Em junho, ainda, serão inauguradas cinco estações com bicicletas compartilhadas para crianças de 3 a 10 anos, no projeto Mini Bicicletar. A ideia é promover ações educativas para estimular o transporte sobre duas rodas desde a infância.
Foi inaugurado também, a partir de um projeto gestado no plano da prefeitura, um sistema público de compartilhamento de carros elétricos. O programa se chama VAMO e começou a funcionar em julho de 2016, com objetivo de incentivar as caronas e o uso de energia limpa. Há atualmente 20 carros totalmente elétricos na cidade, distribuídos em 12 estações.
Programa Vamo colocou 20 carros elétricos nas ruas da cidade. Foto: Prefeitura de Fortaleza/Divulgação
A definição da localização e a instalação são feitas pela prefeitura e o programa é operado por uma empresa privada. Os carros são emprestados mediante um valor de aluguel e os usuários têm que se inscrever no site, além de fazer um test-drive com um técnico. O uso de até 30 minutos do carro custa R$ 15. Para até uma hora, é R$ 20. Os valores são progressivos e podem chegar a R$ 100 para quem usa o carro por 6 horas, por exemplo.
Parcerias internacionais
“Seguramente, hoje grande parte da visão que temos vem do que cidades como Londres, Nova York, Paris ou Bogotá fizeram”, diz Saboia. Ele conta sobre os intercâmbios e participações em seminários e workshops feito pela equipe da prefeitura. E menciona, também, as parcerias com organizações estrangeiras.
Desde 2015, Fortaleza integra a rede do programa de segurança viária da Bloomberg Philantropies, que prevê investir US$ 125 milhões até 2020 para reduzir o nível de acidentes no trânsito no mundo. A organização baseada em Nova York foi criada pelo ex-prefeito e empresário Michael Bloomberg. Em todo o mundo, participam do projeto, além de Fortaleza, as cidades de Acra (Gana), Adis Abeba (Etiópia), Bandung (Indonésia), Bangcoc (Tailândia), Bogotá (Colômbia), Ho Chi Minh (Vietnã), Mumbai (Índia), Xangai (China), além de São Paulo (Brasil).
Como parte do projeto, Fortaleza conta com uma equipe de sete técnicos especializados, pagos pela Bloomberg, para fornecer consultoria às ações do poder público municipal em melhorias no gerenciamento de dados, infraestrutura, fiscalização, educação e comunicação.
Uma das ações que surgiram dessa parceria é a primeira Área de Trânsito Calmo, no bairro Rodolfo Teófilo. Ali, foram implementadas medidas de desenho urbano para oferecer mais espaço e segurança para pedestres e pessoas com mobilidade reduzida.
Área de trânsito calmo, onde a velocidade máxima permitida é de 30 km/h. Foto: Queiroz Neto/Prefeitura de Fortaleza
Inaugurado em 2016, o projeto inclui sinalização especial, três travessias elevadas para pedestres, 14 prolongamentos de calçadas e um painel eletrônico educativo. Na região, a velocidade máxima dos veículos é de 30 km/h. Estão previstas a criação de mais duas áreas nesse mesmo esquema na região da Cidade 2000 e no entorno do Hospital Albert Sabin.
Na esteira da parceria com a Bloomberg, Fortaleza passou a contar também com o apoio e o conselho técnico de uma rede de organizações, como a Vital Strategies, o WRI Brasil e o Banco Mundial.
A Associação Nacional de Transportadores na Cidade (NACTO), parceira da Bloomberg e que tem como presidente Janette Sadik-Khan, ex-secretária de transportes de Nova York e uma das maiores especialistas em mobilidade urbana no mundo, também entrou na rede de suporte a Fortaleza.
Em maio, a organização lançou um Guia Global de Desenho Urbano que cita exemplos da capital cearense. Fortaleza também contou com o apoio de uma equipe técnica da Universidade Johns Hopkins, de Baltimore, dos Estados Unidos, que ajudou a consolidar a metodologia de coleta de dados de acidentes e mortes no trânsito, além de ajudar a formatar as políticas públicas de segurança viária.
A capital do Ceará ainda integra desde 2016 a rede do programa Safer City Streets, projeto ligado à OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) que também ajuda na coleta e compilação de dados sobre segurança viária.
Quais são as críticas
A mudança nas políticas de mobilidade urbana foi uma aposta da Prefeitura de Fortaleza que já rendeu resultados, com o aumento da velocidade de deslocamento nos ônibus e a redução das vítimas fatais no trânsito. Essa mudança foi o carro-chefe da campanha de reeleição do prefeito, em 2016. Mas ela não é livre de críticas.
“Mas em um universo de 4.000 km de vias, ter 200 km para bicicletas não é um problema. O problema, de fato, é que a prefeitura não dá a devida atenção aos pedestres, que são, segundo o Código de Trânsito Brasileiro, aqueles que deveriam ter prioridade sobre todos os outros”, disse Mario Angelo Nunes de Azevedo, professor do departamento de Engenharia de Transportes da Universidade Federal do Ceará.
“A responsabilidade pelas calçadas é do dono do lote, mas a prefeitura deveria regular e cobrar. Sempre ouvi do governo: ‘ah, daqui a pouco a gente vai tratar das calçadas, num segundo momento’, mas esse momento nunca vem.” Azevedo questiona também a falta de fiscalização no trânsito de Fortaleza.
“Estacionamento irregular em cima de calçada ainda é muito comum, conversões proibidas que passam pelos corredores de transporte público. São coisas que atrapalham o fluxo na cidade e poderiam ser resolvidas com multas e educação. Mas a prefeitura tem medo da gritaria sobre a ‘indústria da multa’”, diz.
Outro grande entrave à melhora da política de mobilidade é o atraso na expansão da rede de BRTs, os ônibus maiores que trafegam por corredores totalmente isolados. “O único corredor que está já operando na verdade não funciona completamente. A validação do bilhete, por exemplo, ainda se dá dentro do ônibus, e não na entrada da estação”, diz Azevedo.
O secretário da prefeitura Luiz Alberto Saboia reconhece também que a superlotação dos ônibus é um problema para o qual ainda não há solução. “Claro que não dá para dizer que está tudo ótimo. Estamos numa cidade no Nordeste, com poucos recursos e uma história de pouco planejamento. Mas, seguramente, podemos dizer que Fortaleza avança muito hoje na forma como lida com a mobilidade urbana. Nosso desafio é expandir ainda mais essas políticas na cidade.”
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