Projeto de Lei para ônibus limpos em SP não traz avanços

Proposta vai limitar a evolução da frota paulistana e excluir opções tecnológicas mais avançadas, escreve Olímpio Álvares, especialista em transporte sustentável

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Fonte: Mobilize Brasil  |  Autor: Olimpio Alvares  |  Postado em: 12 de maio de 2017

Ônibus elétrico utilizado pela EMTU na RM de São P

Ônibus elétrico utilizado pela EMTU na RM de São Paulo

créditos: Divulgação

 

Um recente Projeto de Lei, o PL 300/2017, de concepção até o momento desconhecida, assinado pelo vereador Milton Leite, propôs profundas modificações na lei municipal 14.933/2009, que definiu a política da mudança do clima de São Paulo. Essa lei, em seu extraordinariamente ousado Artigo 50, previa a substituição gradual do diesel a partir de 2009, em 10% da frota ao ano, vetando o uso de combustíveis fósseis a partir de 2018 nos 14.700 ônibus da capital paulista. No entanto, embora até meados do ano de 2013 o País vivesse o sonho do crescimento econômico e da prosperidade, com grandes chances de investimento na modernização da frota, em vez dos previstos 90%, nem 7% dos ônibus hoje se enquadram nas expectativas desse artigo.

 

Na verdade, ainda que faltassem os recursos, se houvesse, de fato, respeito à lei, vontade política e articulação competente nas duas últimas gestões do governo municipal, muitos avanços mais modestos poderiam ter sido conquistados, ainda que a meta de 100% de substituição de fósseis em 2018, ou até mesmo alguns anos depois, fosse dada como impossível por dez entre dez especialistas.

 

O Ministério Público de São Paulo vem negociando desde o ano passado com a Prefeitura um Termo de Ajuste de Conduta para revisão do Artigo 50, de modo a garantir um cronograma possível visando à uma renovação tecnológica e ambiental satisfatória da frota paulistana. 


Entidades ambientalistas, de saúde pública, montadoras e operadoras do transporte coletivo, fabricantes de veículos elétricos, produtores e fornecedores de energias e combustíveis alternativos e convencionais, fabricantes de autopeças, universidades e autoridades de transporte vêm tentando, de modo responsável, por meio de discussões exaustivas, auxiliar o Ministério Público e os gestores municipais a chegarem a um denominador comum racional para equacionar uma saída técnica e financeiramente viável, e que evite um grande retrocesso em relação ao Artigo 50 da Lei 14.933/2009.

 

Não obstante, há neste momento um grande ponto de interrogação entre todos esses agentes, sobre o que passa na cabeça dos novos gestores municipais. A Prefeitura anuncia a iminente publicação do edital de licitação dos serviços de ônibus, mas não revela, até o momento, que tipo de ônibus serão exigidos, o que causa intenso desconforto em toda cadeia produtiva do setor.

 

O prefeito João Doria andou pela Coreia do Sul atrás de ideias e até produziu algumas cenas fortes de uma suposta consulta ao “Exterminador do Futuro”, Arnold Schwarzenegger, sobre uma possível ajuda para melhorar a frota paulistana. Mas, até agora, nem uma palavra sobre as novas diretrizes a serem encaminhadas para aprovação do Parlamento Municipal.

 

Enquanto isso, morrem cerca de oito mil cidadãos e cidadãs na Região Metropolitana de São Paulo todos os anos, afetados(as) por doenças cardiorrespiratórias relacionadas com as abundantes emissões cancerígenas da frota a diesel. Além disso, por força do compromisso do Brasil decorrente da recente Conferência Mundial do Clima em Paris (COP-21), o governo federal assinou recentemente sua NDC (Nationally Determined Contribution), com o compromisso de reduzir suas emissões de gases do efeito estufa. A redução compulsória das emissões dos transportes será, inevitavelmente, uma das principais medidas da longa lição de casa que o País deverá entregar para cumprir seu compromisso com a proteção do clima do planeta.

 

Eis que, em pleno suspense sobre uma eventual estratégia inteligente para trazer avanços rumo à frota sustentável, surge, do nada, o vereador Milton Leite, com mais uma lastimável surpresa em matéria de programas de substituição de frota.

 

A proposta estabelece metas bem definidas de substituição de ônibus para adoção de misturas de biodiesel a 20% (B20) e a 100% (B100); considera a adoção de veículos convencionais de classe tecnológica Euro 5 e Euro 6, estes últimos, curiosamente, ainda não regulamentados e sem previsão pelo Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) para sua adoção no Brasil; também prevê a aplicação de veículos elétricos, entrando timidamente com algumas unidades somente em 2023 e em maior volume bem mais à frente, em 2037.

 

Alternativas “esquecidas”
Onde estão nessa proposta os limpos, econômicos e silenciosos ônibus híbridos; e os movidos a misturas de 10% de diesel de cana? Esqueceu dos ônibus a etanol também? Ambos não haviam sido testados no Programa Ecofrota da Prefeitura?  E os outros combustíveis sintéticos produzidos a partir de biomassa, pesquisados em outros países? Não são energias renováveis e limpas? O gás natural e o biogás, não foram citados na lei! "Esquecer" do gás natural neste momento e permitir a continuidade da compra de veículos a diesel Euro 5 nos parece algo, no mínimo, estranho.

 


Alternativas: ônibus híbrido e abastecimento de veículo movido a gás biometano

 

Por que não deixar a porta aberta para essas tecnologias em constante e rápida evolução? Estabelecer uma lei para substituição de ônibus a diesel, que impeça no curto, médio e longo prazo o ingresso de novas tecnologias disruptivas seria um crime contra a concorrência e a inovação tecnológica.

 

Por sua vez, a frota de trólebus de São Paulo deveria ser progressivamente incrementada, de forma a atingir o nível de saturação da capacidade da rede elétrica (hoje ociosa), seguindo a tendência de cidades que praticam o transporte sustentável. Os especialistas em todo mundo defendem o uso preferencial dos trólebus e dos ônibus elétricos a bateria em áreas centrais e ambientalmente sensíveis e em corredores de alta capacidade com operação avançada e priorizada em canaleta - conhecidos por BRT.  Conforme reconhecido pelos próprios técnicos da São Paulo Transportes (SPTrans), os trólebus têm custo operacional competitivo com o diesel convencional; não caberia então um artigo específico sobre adoção imediata dos trólebus até a saturação da rede?

 

Estabelecer aleatoriamente exclusividade para determinadas tecnologias e combustíveis, em detrimento de outras plenamente viáveis e limpas, sem vislumbrar a grande diversidade de tecnologias alternativas energéticas e tecnológicas para os próximos 20 anos, nos parece, na verdade, uma pegadinha.


O biodiesel poderia ser um avanço, mas...
O combustível com adoção de 20% de biodiesel (B20) com origem certificada e com procedimentos de transporte, armazenagem e manuseio que sigam estritamente as normas e recomendações existentes, é seguro. No entanto, o respeito a esses condicionantes é imprescindível. Segundo estudo do U.S. Environmental Protection Agency (Usepa), o B20 reduz a emissão de cerca de 10% do CO2fóssil e 15% nas emissões de material particulado, entretanto, produz aumento de NOx em 4% e no consumo em cerca de 3%, conforme resultado apresentado pela SPTrans em apresentação sobre o Ecofrota ao Comitê do Clima da Prefeitura de São Paulo. Isso faz da mistura B20 uma estratégia de pequeno alcance climático, embora isso seja um avanço positivo na redução das emissões fósseis do transporte coletivo.

 

Por sua vez, as misturas de maiores teores de biodiesel não são autorizadas pelos fabricantes de motores, embora haja iniciativas locais de testes com misturas de maior teor de biodiesel, implicando cuidados especiais e alterações nos procedimentos de manutenção periódica dos motores sob orientação dos fabricantes. Mas, o PL prevê o uso de biodiesel 100% (B100) a partir de 2020 em motores novos "capazes de operar" com este combustível.

 

De fato, nem todos são capazes de operar com B100 e o uso de outros tipos de combustível alternativos ao diesel convencional em motores que não foram desenvolvidos e homologados oficialmente para tal, é vedado pela lei ambiental. Além disso, o uso improvisado de B100 nos motores atuais, poderia alterar as condições certificadas de projeto do motor, aumentando as emissões de NOx e o consumo de combustível em cerca de 10%.

 

Entretanto, caso haja, em caráter excepcional, o desenvolvimento, por parte da indústria automobilística, de alguns motores para operarem exclusivamente com B100, como ocorre, por exemplo, na Alemanha, as montadoras deveriam iniciar o quanto antes o desenvolvimento de protótipos desses motores, com calibrações especiais, e um extensivo programa de testes, para posterior homologação oficial, comprovando o atendimento dos padrões de emissão e desempenho vigentes. Isso poderá levar alguns anos, mas não há por enquanto uma movimentação no âmbito da Anfavea e do Conama para homologação de motores alternativos para uso de B100.

 

No caso da falta do biodiesel B100 por motivos diversos (lembremos da falta de etanol que por pouco não inviabilizou o Proalcool), esses motores especiais dedicados ao B100 não poderiam utilizar o diesel convencional, pois não seriam flexíveis a ponto de manter as características homologadas de emissão, consumo e durabilidade operando com diesel fóssil puro. A segurança e confiabilidade dos motores e do transporte coletivo poderiam, nesse caso, ser afetados.


Ao prever o uso do B100 sem respaldo de uma cuidadosa análise de engenharia, o Projeto de Lei parece ter ignorado uma série de questões técnicas, econômicas e ambientais, que ao nosso ver são fundamentais.

 

A proposta de Milton Leite prevê uma substituição de veículos Euro 3 (Proconve P5) por Euro 5 (Proconve P7). Isso não representa absolutamente nada de avanço, pois se trata de um requisito dispensável, e não precisaria estar escrito na lei. Trata-se de "business as usual". O contrato de operação já prevê a substituição de veículos com mais de dez anos (Euro 3) por veículos de tecnologia atual novos (Euro 5).

 

O padrão Euro 6 e os bons exemplos do México e do Chile
O que a Prefeitura de São Paulo deveria considerar - independentemente do que está escrito na lei - é o fato de as montadoras brasileiras estarem fornecendo ônibus Euro 6 (com filtro de particulados) para o sistema de ônibus de Santiago do Chile, o TranSantiago. Os zelosos chilenos anteciparam a adoção do Euro 6 para seus ônibus urbanos, dada a urgência ambiental de controlar as emissões no Vale de Santiago.

 

Antecipar a tecnologia Euro 6 - vigente na Europa há cinco anos e nos Estados Unidos há sete anos - no caso da compra de ônibus convencionais a diesel novos para utilização de misturas de biodiesel B20, é uma ideia fantástica que deve ser seriamente considerada pela Prefeitura, se quisermos, de fato, melhorar mais rapidamente a qualidade ambiental da frota paulistana. O Euro 6 corrige a falha de performance ambiental do Euro 5 quanto à eficiência de controle do NOx, e ainda, reduz as emissões de partículas cancerígenas em mais de 90% com filtros instalados de fábrica. O Euro 5, equipado com o complexo sistema de controle de NOx a base de ureia, a partir de 2012, encareceu os ônibus no Brasil em cerca de 15% a 20%. Mas, segundo estudos do International Council on Clean Transportation (ICCT), não trouxe os benefícios ambientais inicialmente previstos e trata-se de uma regulamentação ambiental defectiva!

 

Ônibus com tecnologia Euro 6 em Santiago, Chile

 

Não faz sentido os operadores de São Paulo seguirem comprando ônibus encarecidos de tecnologia Euro 5, produzidos pelas mesmas montadoras brasileiras que fornecem ônibus Euro 6 para os Chilenos respirarem um ar mais limpo. Então, sim!! Nós também podemos adotar o Euro 6 já!

 

E que tal estender os efeitos dessa lei para outras frotas que operam sob concessão municipal, como a dos coletores de lixo, que passam as madrugadas correndo atrás do tubo de escapamento dos caminhões diesel, aspirando enormes quantidades de material particulado cancerígeno. O projeto de frota sustentável paulistano não deve limitar-se à substituição dos veículos mais velhos. O artigo 50 revisado deveria incluir as frotas de caminhões de lixo e outras frotas que operam sob permissão e/ou concessão municipal, estabelecendo requisitos legais para a adoção de filtros adaptados de material particulado nos veículos Euro 3 e Euro 5 remanescentes da frota que ainda não for substituída. Essa frota mais velha pode ser muito melhorada em suas emissões de material cancerígeno, por meio de filtros que reduzem o material particulado (e o Black Carbon nele contido, que também tem efeito na proteção do clima) em mais de 90%.

 

A cidade de Santiago instalou 3.200 filtros adaptados em seus ônibus urbanos (com muitos modelos brasileiros), mediante a criação de estímulos financeiros inteligentes: ônibus com filtros podem operar por mais dois anos, além da idade limite contratual. Isso é técnica e financeiramente viável, também para os ônibus brasileiros de São Paulo, e pode ser recomprovado por um programa de testes prévios em ônibus Euro 3 e Euro 5, que compõem a frota paulistana.

 

O México, por sua vez, lançou recentemente e já deslanchou em seu programa de adaptação de filtros nos ônibus urbanos, escolares e caminhões locais, como medida prioritária de emergência para reduzir a contaminação atmosférica. Se mexicanos e chilenos podem, o que nos impediria de limpar nossos ônibus e caminhões de lixo?

 

A lei de substituição de tecnologias de motorização dos ônibus deve ser necessariamente neutra. Não pode, em hipótese alguma, favorecer esta ou aquela tecnologia ou combustível. O futuro tecnológico dos transportes está se desenhando no mundo como claramente diversificado. O futuro é imprevisível, principalmente quando se trata de energias e combustíveis comerciais.


Uma proposta
A conduta correta para a revisão do Artigo 50 é estabelecer na nova lei metas anuais abertas de substituição de frota, de modo que cada pacote de veículos velhos substituídos naquele ano represente uma oportunidade para os gestores e operadores de transportes avaliarem as tecnologias atuais mais favoráveis naquele momento, e fazerem suas escolhas entre as diversas alternativas possíveis disponíveis no mercado, com base em sua capacidade financeira e nos objetivos de promover sempre, e incondicionalmente, os ganhos ambientais máximos em relação ao pacote de ônibus novos movidos a diesel convencional, mas, necessariamente dentro das limitações dos recursos financeiros existentes no momento para financiar os custos incrementais dos ônibus mais limpos.

 

Os recursos para cobertura desses custos incrementais podem ser oriundos do próprio tesouro ou de fundos internacionais de financiamento de desenvolvimento limpo em países emergentes. Há uma grande quantidade de recursos nesses fundos bilionários, que somente aguardam por projetos de desenvolvimento limpo, bem estruturados e rastreáveis, lastreados por instituições locais idôneas. Trata-se aqui, somente, de uma articulação competente dos agentes financeiros da municipalidade, para captação organizada desses recursos para cobertura dos custos incrementais do transporte mais limpo - custos de capital e custos operacionais incrementais, muito claramente definidos.

 

Com isso, ano a ano, um pacote sempre mais limpo de ônibus urbanos (em comparação ao pacote virtual de ônibus diesel novos, que tomamos como referência) substituirá a parcela mais velha e poluente da frota; assim, indefinidamente. Em pouco tempo, São Paulo será brindada com a maior frota limpa do planeta, sem traumas e radicalismos.

 

E mais, essa rota virtuosa apresenta todos os atributos para ser copiada por dezenas de cidades brasileiras e da América Latina, amplificando de modo radical, os benefícios ambientais climáticos e locais originalmente previstos na Lei Municipal de São Paulo - vitrine principal do sistema ônibus na América Latina.

 

Todos os que estão envolvidos neste tema sabem que há uma diversidade de alternativas a cada ano mais confiáveis para reduzir gradualmente o potencial poluidor da frota de ônibus, tanto do ponto de vista tóxico, quanto climático. O nó górdio de um programa de substituição de frota passou a ser estritamente a articulação financeira.

 

Talvez, nosso prefeito, com todo seu voluntarismo negocial, em parceria com seu respeitado e icônico símbolo da política verde do país - o secretário Gilberto Natalini - possam encontrar facilmente os canais do dinheiro ecológico para implementar finalmente a frota limpa em São Paulo.


_____________
* O ICCT é o mesmo organismo que revelou nos Estados Unidos os problemas de emissões reais excessivas de veículos diesel, que deram origem ao escândalo conhecido por Dieselgate.




Olimpio Alvares
 é Diretor da L'Avis Eco-Service, especialista em transporte sustentável, inspeção técnica e emissões veiculares e colaborador do Mobilize Brasil; concebeu o Projeto do Transporte Sustentável do Estado de São Paulo; fundador e Secretário Executivo da Comissão de Meio Ambiente da Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP); Diretor de Meio Ambiente e Sustentabilidade da Sociedade Brasileira de Teletrabalho e Teleatividades (Sobratt); consultor do Banco Mundial, da Comissão Andina de Fomento (CAF) e do Sindicato dos Transportadores de Passageiros do Estado de São Paulo (SPUrbanuss); membro titular do Comitê de Mudança do Clima da Prefeitura de São Paulo; colaborador do Instituto Saúde e Sustentabilidade, Clean Air Institute, World Resources Institute (WRI), Climate and Clean Air Coalition (CCAC) e do International Council on Clean Transportation (ICCT). Foi gerente da área de controle de emissões veiculares da Cetesb, onde atuou por 26 anos, e é membro da coordenação da Semana da Virada da Mobilidade.

 

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