Criador do BikeAnjo, JP Amaral fala sobre bicicletas na Europa

Gestor ambiental, Amaral passou quase dois anos na Alemanha. Ele vê o cicloturismo como uma potente ferramenta para promover o uso da bicicleta nas cidades brasileiras

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Fonte: Mobilize Brasil  |  Autor: Regina Rocha / Mobilize Brasil  |  Postado em: 18 de abril de 2017

Passeio de bike em estação turística próximo de Be

JP aponta a avó das bikes, a Draisiana, criada na Alemanha

créditos: Arquivo pessoal

 

O gestor ambiental João Paulo Amaral (JP Amaral), um dos criadores da rede nacional de ciclistas Bike Anjo, voltou recentemente da Alemanha, onde esteve por quase dois anos participando de um programa de promoção da bicicleta naquele país*. Durante esse tempo, o bike anjo aproveitou para viajar e aprender muito: JP visitou cerca de 46 cidades em 16 países, travou contato com cicloativistas de várias partes da Europa e pode conferir de perto o que está sendo feito lá fora para melhorar o uso da bicicleta entre seus cidadãos. 


 JP Amaral na Alemanha: conectividade Foto: Arquivo pessoal

 

A malha cicloviária na Alemanha é muito elogiada... Na prática, o que viu corresponde a essa boa fama? O que mais o impressionou?

A malha cicloviária urbana da Alemanha não é de fato muito extensa; o que me impressionou foi ver a conectividade entre cidades, com rotas de muitos quilômetros destinadas ao cicloturismo. São inúmeras vias que atravessam cidades e formam essas rotas para os ciclistas. E esse é o lado bonito que nós conhecemos no Brasil. 

Mas, conhecendo o histórico das primeiras ciclovias da Alemanha, descobri que elas surgiram no período nazista como uma forma de segregar e remover os usuários de bicicleta das vias para assim permitir o desenvolvimento automobilístico. Isso fez com que a maior parte da infraestrutura cicloviária no país ficasse basicamente sobre calçadas, muitas vezes compartilhando espaço pequeno e estreito com o pedestre. E, claro, gerando conflitos com quem caminha. 

Um segundo problema, de ordem cultural, é a lógica da priorização do automóvel nas ruas. Prova disso é que até o final da década de 1990 manteve-se praticamente o mesmo código de trânsito da época do nazismo, que determinava a obrigatoriedade do uso de ciclovias. Ou seja, mesmo onde não houvesse ciclovia, o ciclista era proibido de ir pela rua. Na prática, esse código ajudou a passar a visão de que bicicleta fora da ciclovia não tem prioridade. 


Quais cidades europeias você visitou? Há diferenças entre os países em relação aos avanços com a bicicleta?

Estive em 16 países e visitei 46 cidades, num roteiro bem diversificado, que passou pelo Leste Europeu, Península Ibérica e pelos países mais centrais a oeste do continente. Estive em Copenhague (Dinamarca), Amsterdã e Roterdã (Holanda) e Bruxelas (Bélgica). Em Portugal, passei por Aveiro e Lisboa, onde o movimento de bicicleta é forte, mas não conta com muito incentivo do governo. 

No Leste Europeu fui a Budapeste (Hungria) e também a Varsóvia (Polônia), lugares que vivenciam um salto rápido e grande no movimento de promoção da bicicleta - bem parecido com o que temos em São Paulo. De tudo o que vi,  no que se refere aos avanços com a bicicleta, em geral não vi muita diferença entre o que acontece nesses países e aqui. 

Outra reflexão que fiz é que o argumento de que não somos europeus, que nunca seremos como uma cidade europeia no que se refere ao uso da bicicleta, é falso. Na verdade, a própria Europa ainda batalha muito pelo maior uso da bicicleta, e vive os mesmos problemas: tem de enfrentar o problema do espaço desequilibrado que é ocupado pelo automóvel e vários outros...Por isso, dá para ver que ainda há muito o que fazer por lá também. Claro, há países que estão em outro patamar, como a Holanda e a Dinamarca. 

Na Holanda, vi que há de fato uma política nacional para a bicicleta, com os modos integrados. Pude observar como se faz a integração intermodal e como deve ser um programa de bicicletas compartilhadas. Já na Dinamarca, embora não seja em todas as cidades essa evolução, o caso de Copenhague é o mais emblemático. Lá o avanço da bicicleta alcançou um nível muito acima de tudo o que existe. Por exemplo, eles se deparam hoje com o problema de saber como alargar uma via - considerada a que que tem mais bikes da Europa, por onde passam 40 mil ciclistas por dia (!). Talvez lá tenham atingido o limite do possível na infraestrutura urbana, já que esta não está suportando número tão elevado de bicicletas. 

 

Uma árvore natalina de bicicletas... só mesmo na Europa! Foto: JP Amaral

 

Fale sobre as bicicletas públicas na Alemanha. Como funciona, qual a abrangência dos programas naquele país?

Não há na Alemanha uma cultura de promoção da bicicleta compartilhada, de bicicleta pública, propriamente. Há uma noção geral de achar que todo alemão já tem sua bicicleta - e de fato a média é de 1,5 ou 2 bicicletas por habitante, não sei exatamente, mas é por aí. Então, o fato de todo alemão ter a bike guardada na garagem faz com que eles não vejam como ‘bom investimento’ sistemas públicos nas cidades. O que é um erro na minha opinião. Porque, ao abrir mão das bikes públicas, os alemães ignoram os imigrantes, turistas e outros públicos que poderiam usufruir desse serviço. 

Mas há por lá um exemplo interessante de bicicletas públicas: o sistema  gerido pela empresa de trens alemã Deutsche Bahn, o Call a Bike. Este sistema funciona de modo integrado, e é único para todo o país, onde alcança cerca de 40 cidades. Com o mesmo aplicativo e a mesma inscrição, a pessoa pode usar o programa em todo o território. O sistema não depende de estação, e você pode depois de usar a bicicleta, deixá-la em qualquer canto da cidade, que a localização é feita por GPS. Conceitualmente é muito inovador e de baixo custo, por não ter estações. Mas é um serviço antigo, um pouco sucateado, e as bicicletas são ruins, mal mantidas. 

 

Como funciona a integração da bicicleta com outros modos de transporte? Além de bicicletários nas estações, é possível carregar as bikes nos trens e barcos?  

Na Holanda, a integração intermodal é o que de fato faz com que esse seja mesmo o país da bicicleta. Isso envolve ter bicicletários bons, gigantescos, eficientes e seguros onde as pessoas podem deixar tranquilas sua bicicleta; envolve também ter um programa nacional de bicicletas públicas; e ainda, ter a possibilidade – não em todos os casos, pois nos trens intermunicipais isso não acontece - de carregar junto de si a bicicleta dentro do transporte público, sem pagar. 

Essas políticas de integração também são o destaque de Copenhague. Em toda a região metropolitana da capital dinamarquesa é permitido entrar com bicicleta sem pagar, em trens com vagões muito bem preparados, onde é bem simples encaixar a bicicleta sem precisar ficar segurando nem nada. Nesses dois países há portanto o incentivo da isenção na tarifa e não existe restrição de horário para se entrar com a bicicleta nos trens. 

 

Pedestres, ciclistas, bonde... espaços delimitados e políticas de integração nas cidades europeias. Foto: JP Amaral

 

Dessa vivência no exterior, o que acha interessante trazer ao Brasil? 

Da Alemanha, destaco a experiência deles com o cicloturismo como uma ferramenta que pode impulsionar a economia e a mobilidade no país. Embora a Alemanha não seja, na Europa, um país pioneiro da bicicleta (Holanda e Dinamarca estão na frente), no cicloturismo eles ganham de longe. O país arrecada anualmente 9,2 bilhões de euros com isso. Acredito que hoje 25% dos alemães fazem, todo ano, alguma viagem de bicicleta e isso faz com que as associações de bicicleta também promovam o cicloturismo. A lógica é: se uma pessoa se prepara e vai experimentar uma viagem onde pedala 30, 40, às vezes 50 km por dia, então ela está apta a fazer um deslocamento de até 10 km dentro da cidade. Então é muito legal como eles usam a ferramenta do cicloturismo para ser um país promotor da bicicleta. 

Já a integração intermodal é uma forma de se ampliar o raio de alcance da bicicleta, permite ir mais longe do que se somente pedalando. Isso, que é comum em cidades grandes, a gente no Brasil deveria pensar em adaptar ao nosso transporte público. São soluções simples, como por exemplo ter um bicicletário seguro, um sistema de bicicletas públicas e mesmo  políticas de incentivo ao embarque da bicicleta no transporte público. Acredito que no Brasil, e em toda a América Latina, ainda há muito a explorar nesse aspecto.

 Grupo de cicloturistas em localidade na região de Berlim Foto: JP Amaral

 

Integração intermodal: a bicicleta em trens, barcos etc., com amplas facilidades. Foto: JP Amaral

 

Da parte dos movimentos de bicicleta, dos cicloativistas de lá, o que temos a aprender?  

Do que conheci pela Europa, bem interessante foi observar a diversidade de estratégias usadas pelos movimentos para atingir objetivos de promoção da bicicleta. Na prática, pouquíssimos ativistas focam na bicicleta apenas como mobilidade. Como disse, tratam de outros assuntos relacionados, como a pauta do cicloturismo e da saúde, por exemplo. Observei que os ativistas produzem levantamentos para mostrar os resultados da bicicleta no bem-estar das pessoas, e depois encaminham  os dados dos estudos às secretarias de saúde. Também quando a pauta é economia, fazem com que se perceba que o mercado de bicicleta gera empregos, beneficia a economia local, o comércio... Então são estratégias variadas, que apontam para o objetivo comum, que é ver mais gente pedalando. 

 

O que nós brasileiros podemos ensinar aos alemães?

No Brasil temos, mais do que nos países europeus, a experiência das ruas de lazer e das ciclofaixas de lazer. No caso da Colômbia, outro bom exemplo são as ciclovias de Bogotá. Então, esses espaços que se transformam durante o fim de semana, quando as ruas são fechadas aos carros e abertas às pessoas, criam uma cultura de uso do espaço público. E servem de teste à cidade do futuro para tirar carros das vias e eliminar seu impacto ambiental. 

Outro exemplo aqui do Brasil que os europeus sempre ouviam com  interesse vem dos movimentos da sociedade civil, movimentos vigorosos que reúnem pessoas em torno de campanhas pelo uso da bicicleta. Nessa experiência, eles notam que os brasileiros tem um meio importante de influenciar políticas públicas e as prefeituras, ainda mais do que lá, onde existe digamos uma escola de engenharia, técnicos especializados há bastante tempo envolvidos na promoção do transporte por bicicleta. Embora aqui estejamos engatinhando nisso, nossos movimentos são vistos como meios potentes de engajamento e para ajudar municípios a seguirem nessa direção, como foi o caso da campanha Bicicleta nos Planos, feita em conjunto por Bike Anjo, Transporte Ativo e UCB. E ainda ações de assessoramento de municípios para a elaboração de planos de mobilidade urbana, onde a bicicleta é incluída. 

 

Curiosidade: há ‘bikes anjos’ na Alemanha?

Cheguei a conversar com algumas pessoas na Alemanha sobre parcerias que permitiram ter bike anjos por lá. Até surgiram alguns, mas pontualmente. Agora, em outros lugares realmente criou-se um movimento, e o resultado é que teve sim bike anjo na França, na Inglaterra... E na Holanda mesmo, onde ficou demonstrado que há demandas vindas principalmente dos que são imigrantes e que, diferentemente dos holandeses, não nasceram pedalando... 

 

O que sua experiência no exterior poderia agregar ao Bike Anjo ou a outras frentes de atividade? E para o JP Amaral como cicloativista?

Talvez tirar um pouco o foco na bicicleta só como meio de transporte, só como mobilidade urbana, e passar a pensar também numa estratégia multidisciplinar, em que a bicicleta apareça mais conectada a outros aspectos da realidade. Seria pensar a bicicleta como ferramenta de educação nas escolas, como ferramenta de saúde, de política do clima e de ajuda na redução da emissão de poluentes. Tudo isso considerado, penso que podemos conseguir desenvolver ações de muito mais impacto e resultado. 

 

*Com bolsa de estudos, JP Amaral fez parte do programa "German Chancellor Fellowship for Tomorrow's Leaders" da Fundação Alexander von Humboldt, com mentoria da Ong Zeitpfeil e.V.   

 

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