O Conselho de Paris, equivalente à Câmara de Vereadores da capital francesa, aprovou a transformação de uma importante marginal da cidade em uma área reservada aos pedestres e ciclistas. Depois de os carros serem abolidos das margens à esquerda do rio Sena, agora chegou a vez de a mesma medida ser aplicada no lado direito do famoso rio que corta Paris. A medida, aprovada pela maioria dos parisienses, visa a limitar a poluição atmosférica, além de dar mais espaços para as pessoas, ao invés dos carros.
Porém, nem todos ficaram satisfeitos. Comerciantes e profissionais que dependem dos veículos alegam que a mudança vai piorar ainda mais o trânsito parisiense, ao concentrar os veículos em trajetos alternativos à rota central. O economista e urbanista Frédéric Heran, pesquisador da Universidade de Lille 1, desmente essa percepção: ele alega que quanto menos espaço as cidades dão para os carros, melhor eles podem circular. Paradoxal? Leia abaixo os argumentos do especialista, autor de Le Retour de la Bicyclette (O Retorno da Bicicleta, em tradução livre). Heran também analisa a tendência mundial de redução dos carros nas grandes metrópoles e comenta a situação dos transportes no Brasil.
Quanto mais se dá espaço aos carros, mais carros teremos nas cidades?
Sim, é um círculo vicioso. Quanto mais melhoramos as condições do tráfego, mais incitamos as pessoas a usarem carros. É fácil de compreender isso, mas ninguém admite. Para muitos governantes, a solução para os congestionamentos é ampliar as ruas. Pode parecer uma saída óbvia, de bom senso, mas no fundo está errada. Estamos falando do princípio do tráfego induzido. É uma constatação, e não uma teoria: quando ampliamos as ruas, em seis meses, um ano ou no máximo dois, o tráfego motorizado será sempre maior do que imaginávamos no projeto. O caso mais inacreditável foi o anel periférico de Londres, o M25. A obra gerou um aumento de 60% do tráfego, o que é gigantesco.
Aconteceu o mesmo com Paris e o seu boulevard Péripherique. Para onde se espera que os carros vão migrar quando a circulação nas margens do Sena for fechada?
O anel periférico de Paris foi feito bem antes, em 1973, enquanto o de Londres é de 1990. Na época, não foi feito nenhum cálculo desse tipo em Paris. Nos anos 1970, era óbvio para os governantes que era preciso fazer estradas urbanas por todos os lados. Quase ninguém contestava isso. O princípio era construir estradas exageradamente dimensionadas, para absorver o alto crescimento do tráfego que ocorria. Era um aumento de 10% por ano, um índice absurdo. Isso significa que, a cada sete anos, o número de carros dobrava e, em 25 anos, a circulação de carros na região parisiense cresceu seis vezes.
Se fosse possível refazer o projeto, como ele seria pensado hoje?
Infelizmente, se fosse para refazer, teriam feito exatamente a mesma besteira, porque a ideia segundo a qual basta aumentar e alargar as ruas para absorver o aumento do tráfego continua enraizada na cabeça das pessoas, inclusive no governo da região parisiense, presidida por Valérie Pécresse [do partido conservador Os Republicanos, opositor ao Partido Socialista, da prefeita de Paris, Anne Hidalgo]. Ela está convencida de que essa é a solução. Muito poucos vereadores têm consciência do contrário: os únicos são os que vêm do centro da cidade. Eles perceberam que os eleitores estão prontos para uma redução da circulação de carros, por sentirem todos os dias essa pressão dos veículos e da poluição. Por isso, pelo menos 60% dos eleitores são favoráveis à redução do tráfego dentro de Paris.
Tornar a vida dos motoristas cada vez mais difícil dentro das cidades é a solução para forçá-los a mudar o modo de transporte?
Não, mas porque não é essa a lógica de uma política de redução de carros nas cidades. Os motoristas talvez se sintam assim, mas a realidade é que a vida deles é sempre um inferno em uma cidade, onde os carros usam um espaço enorme. Se medimos exatamente o espaço que ocupa um motorista, verificamos que usa 10, 100 e até 300 vezes mais do que uma pessoa que utiliza o transporte público. Esse é o caso se comparamos uma pessoa que vai de ônibus para o trabalho e uma que vai de carro e ocupa uma vaga no estacionamento da empresa.
Basta olharmos à nossa volta: os carros ocupam um espaço gigantesco. Eles precisam de 25 m2 em um estacionamento, enquanto uma pessoa usa em média 12 m2 no seu local de trabalho. São cálculos conhecidos, e os primeiros a fazê-los foram os americanos, os primeiros a motorizar as suas cidades. Os urbanistas perceberam que se todo mundo usasse o carro para ir para Nova York, seria preciso transformar toda a Manhatan em estacionamento para abrigar tantos veículos. É um absurdo completo.
O uso do carro para trajetos cotidianos, como ir ao trabalho, não faz o menor sentido. As cidades que não têm metrô, como Mumbai, ou têm um sistema deficiente, como São Paulo, sofrem terrivelmente com os engarrafamentos porque os carros ocupam muito, muito mais espaço do que o transporte público.
Teste preliminar na marginal direita do rio Sena, que será transformada em zona pedestre. Foto: Charles Platiau/Reuters
A política de transportes de Paris, portanto, é para abrir espaço para os outros meios de transporte, e não tornar insuportável a vida dos motoristas e, assim, incitá-los a mudar os hábitos?
Exatamente. Quando favorecemos os outros modos que não são o carro, facilitamos a circulação dos veículos. Tudo está ligado. Historicamente, melhoramos o transporte público para facilitar o tráfego dos carros, e com as bicicletas e a caminhada é a mesma coisa. Quanto mais ciclistas e pedestres houver numa cidade, melhor circularão os veículos, porque haverá mais espaço. É paradoxal e os motoristas não compreendem isso, mas quando há políticas de incentivo a outros modos de transporte, são eles que vão sair ganhando. E aqui falamos daqueles que têm realmente necessidade de usar o carro; os demais, os que têm alternativa, vão adotar o transporte público, a caminhada ou a bicicleta.
Os críticos da medida em Paris alegam que a transformação das margens do rio Sena em via pedestre e ciclista vai provavelmente engarrafar ainda mais as ruas das proximidades e o anel rodoviário da cidade, lembrando que há categorias profissionais que são obrigadas a usar diariamente o carro. Como resolver esse impasse?
Quando acabamos com o tráfego de veículos numa determinada área que atravessa a cidade, não há uma consequência direta em outras vias importantes – no caso de Paris, no boulevard Péripherique. Os que vão acabar mudando os seus hábitos de transporte não são os que precisam muito do carro para o trabalho, mas sim os que têm escolha. Em Paris, temos uma maioria de pessoas que não têm obrigatoriamente necessidade de usar o seu carro. São esses que precisamos convencer a encontrar soluções – e é o que eles vão fazer, cedo ou tarde. Isso não vai acontecer de uma hora para a outra, como se pensa. Vai acontecer na medida em que eles mudarem os hábitos de vida: por exemplo, quando decidirem ir morar mais perto de uma estação de metrô que os levarão diretamente para o trabalho.
Marginal esquerda, já transformada em zona de pedestres, com áreas de lazer e esportes. Foto: Marc Verhille/Mairie de Paris
Mas, para isso, é preciso melhorar constantemente a rede de transportes, não? Em Paris, são raras as estações com escadas rolantes ou elevador, o que dificulta muito o acesso de pessoas com necessidades especiais, famílias com bebês ou viajantes com bagagem.
No caso parisiense, foi feita a escolha – com a qual concordo plenamente – de não fazer um metrô adaptado às necessidades especiais, porque isso custaria uma fortuna. É um metrô antigo e a maioria das estações é inacessível às pessoas com mobilidade reduzida. Porém, a rede de ônibus abrange o dobro da superfície do metrô. Essa rede, sim, é praticamente 100% acessível às pessoas com necessidades especiais. Foi feito um imenso trabalho nesse sentido: todos os novos veículos são adaptados, foram feitas obras nos pontos de ônibus. Seria um desperdício de dinheiro público adaptar também todas estações de metrô.
Qual é o futuro dos veículos que circularão nas cidades? Serão elétricos?
A eletricidade vai se impor, mas é uma solução enganadora, porque apenas mudamos a poluição de lugar. Globalmente, a redução de poluição é quase zero. Se todo mundo recarrega o seu carro nas horas de pico, a energia nuclear que temos na França não vai bastar e teremos de usar as termelétricas, ou seja, vamos queimar carvão e gás para abastecer os carros elétricos. Neste caso, a poluição gerada seria ainda maior do que com os veículos a combustível. Se a eletricidade passa a ser de origem térmica, o balanço ambiental vira negativo. A solução, portanto, é ter menos carros. Não tem outro jeito, e não sou nenhum aiatolá ao dizer isso.
Mas uma cidade grande pode ter uma circulação dominada por pedestres e ciclistas? Ou é uma solução para as pequenas e médias cidades?
É claro que é possível. Temos de abrir os olhos e olhar em volta. Há uma enorme quantidade de grandes cidades que estão mais avançadas nisso do que Paris, e funcionam. Pegue o caso de Copenhague, onde há poucos carros nas ruas e os trajetos são feitos massivamente de bicicleta. Não é uma cidade que está à beira do caos: é uma cidade que funciona bem. Peguemos o exemplo de Berlim, com 3,6 milhões de habitantes. Em 1974, havia 2% de usuários de bicicletas, e hoje são 15%. Em Copenhague, passamos de 17% pra 35%. Ou seja, há um potencial enorme de mais uso de bicicletas. Em Paris, ainda estamos em apenas 5%.
Você conhece o tráfego em São Paulo?
Não, mas sei que é catastrófico. Soube que o prefeito conseguiu fazer 400 km de ciclovias e só tenho a dizer: “bravo!”. As cidades que conseguiram reduzir o tráfego o fizeram com uma série de medidas progressivas.
Em Paris, começou quando a direita estava no poder. Por exemplo, uma medida simples, a de colocar barreiras para evitar que os carros invadissem as calçadas, foi tomada pela direita. É algo que, evidentemente, complicou o tráfego, mas quem fez isso foi Jacques Chirac, quando era prefeito – justo ele, que é considerado um amigo dos motoristas. Quando Jean Tibéry virou prefeito, em 1995, ele continuou esse trabalho e fez as primeiras ciclovias. Essas mudanças, obviamente, foram um transtorno ainda maior para o tráfego. Depois, foram criados corredores de ônibus, algumas avenidas foram redesenhadas, as calçadas foram aumentadas, cruzamentos foram transformados em praças etc.
Pouco a pouco, reduzimos de 2% a 4% o tráfego por ano, há pelo menos 15 anos. Entre 2001 e 2015, tivemos 25% a menos de circulação de carros. Essa é a tendência mundial, em todos os países, à exceção dos emergentes, onde a situação é mais complicada e é, na realidade, caótica. Mas até eles vão mudar um dia. O Brasil também vai investir nisso um dia, como todos os outros países do mundo.
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*Matéria sugerida para publicação no Mobilize pela leitora Silvia Arruda