É difícil para as pessoas aceitar o fato de que o senso comum muito vezes está errado. Na época da redução da velocidade nas Marginais, uma crítica freqüente e irritada era de que “isto vai prejudicar o trânsito”. No entanto, a condição em que o fluxo de tráfego em uma via de grande porte é mais intenso ocorre quando a velocidade está em torno de 60 km/h e não de 80 ou 90 km/h. É a 60 km/h que a via tem maior produtividade, ou seja, processa a circulação da maior quantidade de veículos por hora, que é o seu objetivo principal (e não o de dar velocidade alta aos usuários). Ou seja, a aparência é enganosa, sendo preciso atentar para a essência do fenômeno.
Na discussão recente, o mesmo problema ocorre. Existe um equívoco técnico muito importante por trás do argumento contrário à redução da velocidade. Frente à redução do número de feridos e de mortos, surgiu o argumento de que a queda ocorreu por causa da crise econômica, que teria reduzido a quantidade de veículos em circulação. O primeiro problema é que não houve medição criteriosa da eventual redução do fluxo médio nas vias das cidades. Mesmo que ela tenha acontecido, em quais veículos, em quais áreas e com qual intensidade ela se manifestou?
O segundo problema – mais relevante para a discussão – é que por trás deste argumento existe o pressuposto de que há uma relação direta entre o fluxo de veículos e os acidentes que possam ocorrer. Mas isto não é verdade.
Embora o aumento do fluxo coloque na via mais veículos que podem se acidentar ou causar acidente, isto não significa que exista uma relação matemática direta entre fluxo e acidentes. Por exemplo, quando o fluxo sobe muito, a velocidade de todos os envolvidos se reduz forçosamente, aumentando a possibilidade de evitar acidentes e suavizando os impactos dos que ocorrerem: em uma situação de congestionamento o risco de acidente é próximo de zero, como ocorre na maioria das vias principais de São Paulo nas horas de pico.
Por outro lado, a maior incidência de mortes violentas ocorre à noite e de madrugada, quando o fluxo é baixo e se juntam dois fatores cruciais – aumento de velocidade e uso de álcool. Os efeitos dependem do tipo de via (local, arterial, expressa), do número de faixas, da geometria da via e dos tipos de veículo que circulam, não sendo possível definir relações fixas de causa e efeito.
Por isso, a relação entre fluxo e acidentes é complexa e certamente não é linear, conforme demonstram vários estudos internacionais. Assim, não é possível usar o argumento mencionado sem comprovação factual. Ao contrário, a relação entre velocidade e acidentes é claramente direta e, além disto, é exponencial: a energia cinética dos veículos que circulam aumenta exponencialmente com o crescimento da velocidade, resultando em mais acidentes (aumenta a distância necessária à frenagem para evitar uma colisão) e mais danos às pessoas e aos veículos envolvidos - um aumento de 30% na velocidade aumentará em 69% a energia a ser dissipada no acidente. A redução da velocidade tem impacto inverso, também exponencial, de redução da probabilidade de acidentes e das conseqüências negativas dos que ocorrerem.
Ou seja, a crise econômica é apenas uma possibilidade de interferência no fenômeno, a ser comprovada, ao passo que a redução da velocidade tem impacto inquestionável, pois a Física é inquestionável. Desta forma, o único fator claramente atuante no processo é a velocidade, motivo pelo qual o seu controle é a ação principal e inegociável de qualquer plano de segurança de trânsito em todo o mundo. No caso do Brasil, vivemos há décadas dentro de um ambiente de trânsito muito violento, caracterizado por privilégios, egoísmo e iniquidade no uso das vias. Isto já é uma razão plenamente justificável para mudarmos nosso comportamento, se nós realmente quisermos cidades melhores para todos.