“A liberdade da cidade ainda está para ser encontrada”, fala David Harvey -1-. A dimensão do conceito “liberdade” é complexa, mas o que será para uma criança? A interação entre o sujeito e seu entorno social outorgam o caráter de singularidade a cada tipo de noção de liberdade, conforme a dissertação A noção de liberdade da criança -2-.
Rui Matos, coordenador do Centro de Investigação em Motricidade Humana do Instituto Politécnico de Leiria (Portugal) comenta: “Nós, os investigadores, mostramos o perigo que é não deixar as crianças arriscar. Deixá-las arriscar num ambiente de relativa segurança é fundamental para se adaptarem às situações. A criança tem de aprender a cair e a dominar o seu corpo. Mais tarde, quando precisar na vida real de se libertar de alguma situação eventualmente até perigosa, talvez não tenha as capacidades motoras para o fazer, não tem equilíbrio, agilidade e para mim esse é o verdadeiro risco”.
“As crianças precisam de um local perto de casa,
ao ar livre, sem um fim específico, onde possam brincar,
movimentar-se e adquirir noções de mundo.” Jane Jacobs -3-
E o que é deixar arriscar? “O que é liberdade para você?” é perguntado a um menino de 11 anos. “Liberdade é ter chance de fazer o que quiser. Apesar de que tem suas consequências, não é? Tanto positivas quanto negativas”. Criança tem noção de escolha? Os adultos somos cientes? “O que é para você liberdade?” Menina de 9 anos responde “Eu acho que liberdade, assim, é poder fazer o que tu quer sem ser vigiada, sem ser punida”.
E o que as crianças fazem quando podem fazer o que elas querem nos espaços urbanos? Quando é permitido que fiquem à vontade, vigiados mas com distância? Quando tem liberdade de escolha no uso do espaço exterior, nos movimentos corporais, correm e medem os espaços. Para saber quanto podem correr, quanto podem pular.
Eu acho que um lugar privilegiado para “se libertar” são as ruas de lazer. Lá os papeis são invertidos. O que é do carro, do barulho, da poluição, do perigo, vira um espaço grande, gigante, largo, comprido, sem medos.
Em 1974, na Colômbia, o projeto Ciclovías determinou ruas exclusivas para ciclistas em datas e horários específicos. Em 1997, a ideia foi ampliada para tornar tais vias exclusivas para pessoas e rebatizada de “Recreovía”. É lá que se encontra o maior número de Ruas de Lazer do mundo: somadas, essas vias têm mais de 340 quilômetros.
Em São Paulo, no ano de 1977, Rua Manoel Faria Inojosa, em São Miguel Paulista, na zona leste de São Paulo, após 12 anos de insistência mensal na Prefeitura, Dirce Vieira, de 83 anos, 15 filhos e 30 netos, conseguiu o direito de interditar a via aos domingos e feriados, insistindo perante à Secretaria Municipal de Esportes e Lazer para trocar o tráfego de carros pelo lazer comunitário aos domingos para que a criançada pudesse brincar em paz. Estava inventado o conceito das ruas de lazer: hoje, há 1.245 vias que funcionam, oficialmente, assim na cidade. Em São Paulo o programa foi oficializado pela Lei nº 12.264 (1996)-4-.
No país há várias cidades com Ruas de Lazer em viários importantes da cidade: em Brasília, o Eixo Rodoviário ou “Eixão” de 13km, fica fechado aos domingos e feriados, das 6h às 18 horas. No Rio de Janeiro as ruas da orla marítima, em Salvador a Avenida Oceânica nos domingos de 8 às 12h; em Vitória os feriados e domingos até às 13h, a Avenida Dante Michelini e ruas do Centro. Já em São Paulo, há um movimento para conseguir fechar um tramo da Avenida Paulista: o projeto “Paulista Aberta” tem como objetivo oferecer mais espaço de lazer, encontro e atividade física ao cidadão paulistano aos domingos no local mais frequentado e emblemático da cidade.
Pesquisa Instituto Datafolha, mostra que em São Paulo capital os parques e as praças são os espaços mais lembrados como locais de atividade cultural (20%) versus shoppings (8%)-5-. Será que as pessoas iriam usar a Avenida Paulista? Bom, só olhar a carinha da criança…
Estas ruas fechadas aos carros não são espaços urbanos que aconteçam em poucos lugares. Existe a CRA – Ciclovias Recreativas de las Américas (Rede de Ruas de Lazer das Américas) criada em 2005. Na rede estão cidades da Argentina, Brasil (Rio de Janeiro desde 2005 e Sorocaba desde 2010) Canadá, Chile, Colômbia, Cuba, Ecuador, Estados Unidos, Guatemala, México, Peru, Puerto Rico, Uruguay e Venezuela; organiza-se um congresso internacional anual, sendo o último em Santiago do Chile (novembro 2014).
Outros países como a Grã-Bretanha tem entidades e campanhas que promovem o fechamento das ruas para o brincar.
Mas é tão importante isso do espaço livre? No começo do texto falamos sobre isso. As crianças são pessoas que estão começando a descobrir o mundo e descobrir a liberdade, também a liberdade de correr um risco, de ser prejudicado, de descobrir, de cometer um engano, de ser exposto ou de ser superado -6-.
As ruas de lazer reestabelecem a ordem urbana em consonância com os desejos dos seus habitantes, das pessoas (e não só dos motoristas). Crianças, adultos, cadeirantes, esportistas, todos podem usar o chão urbano. Todos somos donos do espaço. Não há a imposição do mais forte.
As ruas de lazer também trazem o silêncio. Risos, conversas e também silêncio. Não é indispensável ter a galinha pintadinha nas caixas de som. Uma criança que está em silêncio não significa que está precisando de nós ou que esteja triste, ele não tem por quê. O silêncio da criança pode ser porque está criando algo ou porque está concentrado, imaginando seu mundo, conhecendo ele e conhecendo-se, observando enquanto avalia o que tem entre mãos. Escuta e a observação é algo básico na infância -7-.
As ruas de lazer trazem movimento, liberam energia. “Para que as crianças aprendam, eles precisam poder prestar atenção. Para prestar atenção, nós precisamos deixar que se movimentem”, diz Valerie Strauss (8), especialista em temas educativos. Crianças sempre sentadas, quietas. Na escola, no carro, dentro de casa, dentro da grade. Você sabia que Brasil é o segundo país do mundo em consumo de Ritalina, a droga administrada em crianças e jovens diagnosticados com TDHA – Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade. O diagnóstico de TDHA cresceu no Brasil 775% em dez anos (sim, 775%, não leu errado)-9-.
Este tema gera muita polêmica, pois há quem defende que é um problema genético, em quando para outros é psicossocial. O que parece ser aceito mais amplamente é que é um problema diagnosticado em excesso, sendo que muitos profissionais tendem a dar início ao tratamento depois de um diagnóstico puramente intuitivo, inclusive na primeira consulta médica -10-. Alguns sinais do TDHA são movimentação constante, brincadeiras e passeios agitados, falta de concentração na lição escolar. Armandinho opina o mesmo que eu.
Pesquisas -11- de neurocientistas mostram que atividade física melhora os sintomas e reduz a medicação. Gosto muito desta frase do Blog da Diirce, “O numero de crianças com distúrbios não cresce. O que aumenta, na verdade, é o número de sedentários. Sentados, fechados, quietos” -12-. Vamos deixar nossas crianças brincar, correr, se movimentar? Se sentir livres por uns minutos? Precisamos muitas mais ruas de lazer.
“Quem usa a rua?” -13-
Criança 1: “todos”
Criança 2: “não, eu não”
Criança: “então não todos”
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IMAGENS:
Foto 1 (3 imagens): Irene Quintáns. Parque Burle Marx e Condomínio São Paulo
Fotos 2 e 3 (2 imagens): Irene Quintáns. Centro Cultural Brasília
Foto 4: Primeira rua de lazer (foto Carolina Iskandarian) e crianças patinando na rua (São Paulo, anos 70)
Foto 5 (2 imagens). Ruas de Lazer na Grande Vitória
Foto 6: Alex Gomes. Avenida Paulista, São Silvestre 21/12/2014
Foto 7: Playing Out
Foto 8: Armandinho
Foto 9 (2 imagens): Irene Quintáns e Fernanda Camarim. Elevado Presidente Costa e Silva.
REFERÊNCIAS:
1. HARVEY, David. A liberdade na cidade (2009).
2. TORRICO CHÁVEZ, Maria Isabel. A noção de liberdade da criança. Dissertação para Mestrado em Educação, Universidade Federal Rio Grande do Sul. Porto Alegre (2009)
3. Obrigada a Laís Fontenelle Pereira pela referência
4. Matéria Prefeitura Municipal São Paulo
5. Pesquisa “Cultura em SP: Hábitos Culturais dos Paulistas”.
6. FERNÁNDEZ, Manuel. El menguante espacio de libertad que dejamos a niños/as.
7. El valor del silencio en el juego infantil.
8. Matérias da autora disponíveis http://www.washingtonpost.com/blogs/answer-sheet/wp/2014/10/24/teacher-spends-two-days-as-a-student-and-is-shocked-at-what-she-learned/
9. Pesquisa do Instituto de Medicina Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ).
10. Pesquisa Is ADHD Diagnosed in Accord With Diagnostic Criteria? Overdiagnosis and Influence of Client Gender on Diagnosis. http://veja.abril.com.br/noticia/saude/deficit-de-atencao-e-diagnosticado-em-excesso-diz-pesquisa
11a. HILLMAN et al. Neuroscience, 159, 1044-1054 (2009).
11b. HOZA, Betsy et al. “A Randomized Trial Examining the Effects of Aerobic Physical Activity on Attention-Deficit/Hyperactivity Disorder Symptoms in Young Children” (2014).
12. Blog Diirce “Crianças sentadas ou hiperativas?”
13. GULGONEN, Tuline. Pesquisa com crianças na Cidade do México. UNAM – Universidad Nacional Autónoma de México – UNAM
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[…] mas, na dúvida, vamos para as ruas, e com as crianças, como sugere Irene Quintáns em seu blog Passos e Espaços. Bom final de semana a […]