Tentativa de esgotamento de um local parisiense (1) é uma coleta de mil detalhes pequenos e imperceptíveis que compõem a vida de uma grande cidade, de um bairro determinado de uma grande cidade: as incontáveis e sutis variações do clima atmosférico, da luz, dos cenários de tudo o que está vivo.
Georges Perec, escritor francês, descreve “aquilo que em geral não se nota, o que não tem importância: o que acontece quando nada acontece, a não ser o tempo, as pessoas, os carros e as nuvens”.
Fico fascinada com os limites, os entornos, os espaços urbanos e como se delimitam ou se diluem. Como cada pessoa sente o que acontece ao seu redor, como transpira seu olhar, como os lugares a acolhem como ela interage com eles. E aí, no meu olhar de urbanista, aparece a palavra “mágica”, BAIRRO, a unidade mínima de apropriação da cidade.
Ao longo do século XX, vários teóricos quiseram definir o que que é, a sua forma, seu tamanho. TVarios concordam que o bairro é uma entidade com um raio de 300-400 metros – cinco minutos a pé. Eles, urbanistas, usam essas medidas para poder medir e estruturar as partes da cidade(2).
Mas Perec não. Como falei, ele gosta de aquilo que em geral não se nota. Eu também. É por isso que amei a definição que ele dá para o bairro: “Bairro é a parte da cidade à que não há que se transladar, pois já estamos nela” (3). E essa definição não entende de medidas, entende de sentimentos. Sentimentos de pertencimento!
O bairro acontece em qualquer lugar da cidade. Não só nas áreas nobres, não só nas áreas periféricas. Jan Gehl (4) explica de uma forma muito simples o que é preciso para um espaço urbano ser, de fato, um espaço urbano (e não uma “terra de ninguém”): espaços para caminhar, lugares para estar, para poder ficar em pé, para poder sentar, para poder ver- escutar-falar. Essas são as coisas necessárias para sentir-se acolhido em um espaço da cidade. Sem isso, não existe bairro, não nos sentimos dentro dele, parte dele.
E as crianças, elas constroem na sua relação com a cidade esse conceito. Sabe, depende. Depende se nós, adultos, deixamos ou não.
Veja dois desenhos onde uma criança vai até a escola em transporte escolar e outra caminha.
Faz uns dias fui convidada para ministrar uma aula no Instituto Singularidades sobre a relação da criança com a cidade. Lá, antes de refletir sobre o olhar da criança, os alunos (adultos) trouxeram algumas descrições muito lindas.
“Bairro é a área geográfica que fica onde estão comportados os moradores que você pode chamar de vizinhos”
“Bairro é um pedaço de cidade onde vivemos histórias, guardamos memórias”
“Pedacinho de cidade no que a minha mãe mora e eu morei por muito tempo”
Caminhar livremente pela cidade, ter lugares onde estar. Passos e espaços.
E os bairros surgem, nascem, mudam. Precisamos o sentimento de pertencimento desde sempre.
Na foto, crianças desenham o seu bairro e, espontaneamente, caminham os lugares.
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REFERÊNCIAS
(1) PEREC, Georges. Tentativa de esgotamento de um local parisiense. Edição original de 1975. Reedição de Gustavo Gili, Barcelona, 2016. Tradução ao português de Ivo Barroso
Imagem 1_ Diagrama âmbitos_Irene Quintáns
(2) http://evstudio.com/the-neighborhood-unit-how-does-perrys-concept-apply-to-modern-day-planning/
(3) PEREC, Georges. Espéces d’espaces
Imagem 2_autor desconhecido
(4) GEHL, Jan. Life between buildings:using public space.2006
Foto 1_Higienópolis, São Paulo. Irene Quintáns
Foto 2_Jardim Ângela, São Paulo. Irene Quintáns
Imagem 3_Pesquisa Mobilidade nas escolas de São Miguel Paulista, São Paulo. Consultores Irene Quintáns e Alexandre Pelegi para WRI – Bloomberg Philantropies no projeto Global Road Safety.
Imagem 4_ Desenhos de Flying Tiger. Depoimentos dos alunos da aula Criança e a cidade do Instituto Singularidades.